segunda-feira, 17 de agosto de 2009
Todos os momentos são históricos
escrevo um poema que não muda a história
rasgo um velho retrato de família
desenho um gesto ousado ou mesmo insólito
uso no rosto a mesma velha mímica
e sem pensar em nada limpo os óculos
mas todos os momentos são históricos
não desço à rua fico só no átrio
não bato à porta bate a porta dúbia
olho no espelho a minha imagem flácida
e contenho no peito a minha fúria
e contenho na carne dons eróticos
mas todos os momentos são históricos
bocejo para o tempo da intempérie
espero até que tudo esteja nítido
e também faço férias nestas férias
ouvindo ao longe o mar lúgubre e rítmico
ou uns vagos zumbidos talvez cósmicos
mas todos os momentos são históricos
digo algumas palavras transitórias
discordo mas apenas num murmúrio
opero dez mudanças mas teóricas
levanto-me já tarde sou o último
e sento-me inda tonto dos narcóticos
mas todos os momentos são históricos
dou quatro passos não ganho distância
mas ganho a náusea ganho um ténue tédio
apenas sei onde ferrar a âncora
neste porto de areias e de efémero
onde estar meramente é já uma glória
mas todos os momentos são históricos
Anthero Monteiro, Desesperânsia,
Vila Nova de Gaia, Corpos Editora, 2009, 2.ª edição