sábado, 29 de agosto de 2009

TERRAS DA FEIRA entrevista Anthero Monteiro







LITERATURA
Anthero Monteiro e o seu percurso no mundo das palavras

“Sou muito mais um poeta de inspiração do que
de transpiração”


A segunda edição do seu livro de poesia “Desesperânsia” foi apresentada em Junho deste ano. Participou na colectânea de ensaios “Catorze escritores do Norte” com um texto sobre Sophia de Mello Breyner e tem agora um blogue dedicado à poesia em www.pracadapoesia.blogspot.com. Anthero Monteiro, de S. Paio de Oleiros, usa as palavras para falar da vida, do mundo, de tudo porque é proibido proibir. Garante que há público para a poesia, mas que ainda há muito a fazer por ela. Por isso, continua de serviço a alimentar-se e alimentar muita gente de versos que rimam ou não.


Divulgar poesia e poetas: um percurso atribulado ou uma forma de estar na vida?

É mais uma preocupação de permanente aprendizagem, uma prestação de serviço voluntário, uma forma de partilha. Digamos que a minha formação intelectual e talvez ética me obriga a estar permanentemente ao serviço. Quem me conhece sabe que houve sempre em mim algo que me moveu nesse sentido e de múltiplas formas, independentemente de sabermos se esses serviços prestados são válidos ou não… Por outro lado, não posso negar que há nisso, porventura, também uma motivação egoística, para além da aprendizagem pessoal: é que também me divulgo a mim e, ao ler em voz alta o que escrevo, vou avaliando a reacção do público e concluindo se o poema lido é apreciado ou não. Isso pode ser decisivo para o considerar publicável ou não…

A poesia é uma forma de olhar o mundo através das palavras?

Não é só uma forma de o olhar: é uma forma de o tornar melhor e mais habitável. Toda a gente olha o mundo e fala dele a seu modo. O poeta, com as palavras que escolhe para falar dele, embeleza o que escreve e o objecto dos seus versos. Pelo menos, pretende fazê-lo.

Como nasce essa vontade de escrever?

Nasce da vontade de intervir e criar: quando digo “criar”, quero dizer exactamente isso de melhorar o que nos rodeia: por isso, se equipara o poeta a um deus…

Escreve todos os dias ou só quando a inspiração bate à porta?

Sou muito mais um poeta de inspiração do que de transpiração. Ando sempre com um bloco e uma esferográfica, mas normalmente só tomo algumas notas de possíveis temas ou ideias para incluir no poema. O poema vai-se fazendo no subconsciente e, de repente, sento-me no computador, se está à mão, e escrevo. Mas não estou sempre a escrever, nem tenho tempo para isso. Bem sei que me vão dizer que, estando aposentado, tenho todo o tempo do mundo. E quem faz a mudança da biblioteca da minha terra para as novas instalações? Ou os livros e tudo o mais vão lá ter voando? Alguém imagina que, mesmo estando a Biblioteca encerrada para férias, eu estou lá dentro praticamente todos os dias? Para além de poeta, por gosto (será por mania?), sei que tenho compromissos que estão em primeiro lugar. É mais um serviço que julgo prestar, que alguns talvez achem que não presta para nada. Outros (e até alguns responsáveis) nem dão por isso… Preferem acreditar que a providência se encarrega de tudo e que não compete a cada um fazer o que tem de fazer.

Um livro, um quadro, uma pessoa... Tudo serve de inspiração para quem escreve?

Claro, tudo serve de pretexto e pode ser objecto do poema. Mas às vezes são as próprias palavras que o constroem, ou seja: algo serve de motivo ao poeta; ele começa a escrever e, por vezes, não sabe onde vai parar, mas são as próprias palavras que o vão conduzindo até ao fim.

Há assuntos proibidos para a poesia?

Isso seria negar a essência da própria poesia. António Ramos Rosa tem um livro já antigo intitulado “Poesia, Liberdade Livre” e é essa formulação que me serve de norma de conduta poética: é proibido proibir.

É complicado ser poeta hoje em dia?

O que mais há é poetas e gente a publicar. Há muita gente a pagar às editoras para isso. Não parece ser difícil aparecer-se como poeta. Mais problemático será o futuro reservar a tanta gente uma linha que seja nas páginas da literatura. Só mais tarde, portanto, saberemos quem foi um verdadeiro poeta, independentemente de todas as injustiças a que todos estamos sujeitos.

No seu livro “Desesperânsia”, cuja segunda edição foi lançada em Junho, centra-se em que aspectos?

A primeira edição saiu em 2003 e esta é cópia fiel. Trata-se de uma sequência de textos que percorrem um trajecto temático mais ou menos lógico do nascimento à morte, passando pela infância, pela descoberta da poesia aos 12/13 anos, pelo amor, pelo desamor, pelo sono, pela insónia e pelo sonho, pela reflexão sobre o que estamos a fazer no mundo, na certeza de que, como diz o poeta italiano Cesare Pavese, numa das epígrafes do livro, “não há nada mais amargo do que a inutilidade”. Os poemas incidem sobre as grandes obsessões do poeta, sendo a maior de todas a da morte, que ele trata com particular atrevimento e ironia, como se a não temesse e quisesse afeiçoar-se-lhe. E sabendo que isto é uma passagem e que importa ser útil, apesar de todo o desespero e de toda a ânsia (a tal “desesperânsia”), termina com um último conselho: “não sujes mais / limpa os pés / antes de saíres”.

Faz também parte do grupo de autores de todo o mundo representado na “Antologia Poetrix 3”. Como surgiu esta oportunidade e qual foi a sua contribuição?

Fiz parte do M.I.P. – Movimento Internacional Poetrix, uma comunidade poética que pratica uma modalidade criada pelo poeta bahiano Goulart Gomes, inspirada nos haikais japoneses (uma e outra são simples tercetos). Cheguei a ser coordenador nacional e ganhei, em dois anos consecutivos, o primeiro prémio do concurso realizado anualmente a nível internacional. Publiquei, aliás, o primeiro livro português e europeu de Poetrix, intitulado “Esta Outra Loucura”. Mas já tinha sido seleccionado também para a primeira antologia de Poetrix, publicada pela Scortecci, no Rio de Janeiro. Quando entrei para o mestrado na Universidade de Aveiro, abandonei o movimento por falta de tempo, mas continuei a escrever os meus tercetos, tendo sido recentemente convidado a participar na terceira antologia com uma série de 9 poetrix, que foi o que coube equitativamente a cada poeta participante.

Participou também na colectânea de ensaios “Catorze escritores do Norte”. Por que razão escolheu falar de Sophia de Mello Breyner?

O mentor desse projecto foi o Orlando da Silva, da Vergada, que se corresponde com inúmeros escritores de todo o país. Tenho a honra de ser amigo desse homem íntegro e amante da Cultura, um cidadão interveniente e útil à comunidade, que alguns, se pudessem, gostariam de apoucar, por despeito. O Orlando convidou esses escritores e incumbiu-os de tratar, cada um, de um autor do Norte. A mim, coube-me escrever sobre Guilherme Braga (já tinha pronto um texto proveniente de um seminário em que participei na Universidade) e sobre a Sophia. Por mim, não teria escrito sobre ela, porque eu não era grande apreciador e nem sabia tanto como isso. Tive que investigar e fui o último a entregar o trabalho. Mas agora acho que valeu a pena: aprendi muito e agora percebo as bases da obra andreseniana, que prima sobretudo pela sua extraordinária coerência.

Tem um blogue que se assume como uma praça onde se apregoa a poesia. Mais uma forma de divulgar poesia?

Mais um serviço de voluntariado, se quiserem vê-lo assim. O blogue vai fazer um ano em Setembro e a Praça da Poesia já excedeu os 600 posts e por ela passaram mais de 200 poetas portugueses e estrangeiros. E se digo que é um serviço é porque, nas muitas sessões das várias tertúlias que coordeno – outro serviço gratuito para a(s) comunidade(s) –, os leitores de poesia que comigo colaboram servem-se normalmente dos textos ali colocados.

Tem um poeta de eleição?

São tantos os poetas de que gosto que é complicado optar. Mas posso citar como poetas que aprecio muito: Álvaro de Campos, Alberto Caeiro, Cesário Verde, Manuel Laranjeira, Mário Dionísio, Al Berto, Cesariny, David Mourão-Ferreira, O’Neill, Vasco Graça Moura, Nuno Júdice, Eugénio de Andrade, Sophia, Daniel Faria, Gonçalo M. Tavares, Levi Condinho, Rosa Alice Branco e Daniel Maia-Pinto Rodrigues. Entre os estrangeiros, os brasileiros Drumond e Vinicius, o chileno Pablo Neruda e a polaca Wislawa Szymborska. Esqueci dezenas decerto, mas não deixarei de mencionar a poeta Manuela Correia, que vive em Santa Maria da Feira, nas Ribeiras do Cáster, há muitos anos, e de quem o concelho, exceptuando a revista “Villa da Feira”, ainda não deu conta. Ora a cultura não se faz apenas com os que vêm de fora…

O Concelho tem dado a devida atenção à poesia através das iniciativas culturais que vai promovendo?

Salvo honrosas excepções, creio bem que nem por isso… Uma ou outra escola de concelho pede a minha presença, mas é de fora sobretudo, até de algumas câmaras, que vêm solicitações: Porto, Gaia, Famalicão, S. João da Madeira, Évora, Entroncamento, etc. Parece que outra das honrosas excepções é o “Terras da Feira” que, como se vê, se lembrou de mim e a quem eu muito agradeço esta oportunidade.

Continua ligado a vários colectivos que recitam poesia. Essas iniciativas têm público? Há cada vez mais gente e querer ler poesia de forma espontânea?

Na maior parte dos casos, não estou apenas ligado a esses colectivos: coordeno-os. A Onda Poética de Espinho está viva, com mais ou menos dificuldades, há quase uma dúzia de anos. O Quarto Crescente, na Biblioteca de S. Paio de Oleiros, só se realiza quando há apoios, mas consegue reunir entre 60 a 80 pessoas (sala cheia) e já faz parte do roteiro de qualquer amante da poesia. As Quartas Mal-Ditas do Porto costumam encher também o piano-bar do Clube Literário. E todas as quartas-feiras, há poesia no Púcaros Bar, junto à Alfândega do Porto, e eu, que já lá vou há mais de dez anos, estou lá a abrir a sessão, muitas vezes com o bar cheio e atento ao que ali se passa e com um número significativo de poetas e leitores a mostrar os seus dotes. Por isso, há público para a poesia, ainda que eu sinta que há muito a fazer ainda por ela. Por isso é que eu e outros estamos de serviço permanente a sensibilizar as pessoas e a dar-lhes poesia de comer, que é para isso que ela serve, segundo dizia a Natália Correia.


In Terras da Feira de 27/08/2009