quinta-feira, 20 de agosto de 2009
Inventário final
e ficou-me de herança esta fortuna
o sal das tuas mãos a mágoa agreste
esta grilheta com que me prendeste
a navalha da espera e da lacuna
o mapa dos lugares que foram nossos
e as arcas de tesouros desventradas
as horas que vivemos e são nadas
a carne usufruída só destroços
um profundo remorso indefinido
de nenhum crime salvo a louca entrega
o silêncio gritante que me verga
o sentido de tudo sem sentido
o buraco da estrela que é negrume
no sítio das colinas as crateras
o eco tão longínquo do que eras
o cilício pungente do ciúme
aquele aroma apodrecido agora
que enfeitiçou os meus caminhos todos
e vivia na graça dos teus modos
e emurcheceu nas teias da demora
o torpor de tritão que me atravessa
o gorgulho de um tédio quase insano
a traça estracinhando o íntimo pano
este verme por dentro da cabeça
falto de ti recompensou-me a sorte
dono apenas de trevas e vazio
saúdo o derradeiro calafrio
pois nada custa repetir a morte
Anthero Monteiro, Desesperânsia,
Vila Nova de Gaia, Corp0s Editora, 2009 , 2.ª ed.