Van Gogh,
A Ressurreição
de Lázaro
ainda que lhe parecessem longínquas
deixou-se ficar de olhos bem apertados
para escapar às lanças agudas da luz
que maçada voltar à vida – pensou devagarinho
para ninguém suspeitar que pensava
nunca dormira um sono tão reparador
num leito macio de esquecimento e outras nuvens
os circunstantes gastaram-lhe o nome
insistiram com ele dobraram-lhe o corpo
sentaram-no no leito ergueram-no
e ampararam-no de pé no meio da sala
foi quando estrugiram as palmas
que foi abrindo dolorosamente os olhos perros
como portões enferrujados de há séculos
por fim levaram-no para a mesa e esvaziaram os copos
enquanto o enchiam de perguntas ininteligíveis
toda a família já trocara de roupa e dançava garridamente
pela madrugada adormeceram sobre o próprio vómito
e Lázaro levou a sua náusea para o quintal
quando o nó das trevas se desfez
o sol foi encontrá-lo enforcado num dos ramos da figueira
a essa hora já o fazedor de prodígios
estava na cidade mais próxima
a abrir os olhos dos cegos
para a vida insuportável
Porto, 9 de Novembro de 2005
Anthero Monteiro, Evangelho Segundo (inédito)