terça-feira, 18 de agosto de 2009
Poema dos braços inúteis
agora só tenho braços
para cruzar perante o irremediável
ou segurar esta ânsia de chão
que me comprime a nuca
souberam guardar tesouros imperecíveis
velar o sorriso por dentro do teu sono
e a nebulosa que te faz sonhar
julgaram preservar dos cardos
a seda do teu suave existir
empreenderam mil lances de aventura
detiveram o emurchecer das tardes
e pelas noites turvas solitárias
ansiaram a enseada do teu peito
foram escrínios de algum sibarita
lianas trepadeiras e gavinhas
apetecidos tentáculos
deles voaram aves peregrinas
como dos bolsos dos ilusionistas
fizeram brotar fontes em lugares
secretos do teu corpo ou da tua alma
ambos donos do mesmo lago
ambos perdidos na mesma água
esbracejámos na aflição do prazer
para mais depressa soçobrarmos
de que servem agora
os braços e estas mãos e estes dedos
e quem foi dono deles e sonhou
de ti ser dono ao menos uma tarde
uma efémera tarde como quando
julguei possuir o mar e a eternidade
só por ter nos meus braços os teus braços?
o mar que me cuspiu nos olhos míopes
não quer ser possuído mas possuir-me
e a eternidade lenta e paciente
já me exige o meu corpo mutilado
dos braços
dos abraços
e de ti
Anthero Monteiro, Desesperânsia,
Vila Nova de Gaia, Corpos Editora, 2009, 2.ª edição