domingo, 30 de novembro de 2008

Natal

O poeta nasceu numa choupana fria
e em cima da palha fria também.
Mas não havia anjos, não havia…
E a noite era agreste, enorme, fria,
E o poeta, no ventre da mãe, já ouvia,
ouvia, nitidamente ouvia, e sentia também,
os gritos da mãe,
- ensanguentados e longos os gritos da mãe.

E não havia estrelas na choupana, não havia…
Só um clarão de incêndio além, além…
- para quê estrelas, se ninguém lá ia?... –
e tornando mais fria a noite fria,
o poeta ouvia, ouvia e sentia também,
mais ensanguentados e longos os gritos da mãe.

Trazia consigo, trazia, trazia
distâncias marcadas, caminhos traçados,
e o ritmo de tudo que no mundo havia
- o que o mundo sabia e não sabia… -
e requintes, e pecados,
e todos os gestos, e todos os dramas,
e milhões de versos quentes como chamas,

e trazia também
- trazia também o sangue endoidado,
revolto e alongado
dos gritos da mãe.

Mas a noite era agreste, enorme, fria,
e um dedo de fogo apontou no além:
o tecto caiu, e enquanto caía,
o poeta sorria, sorria e sorria,
e, depois, ainda ouvia
(ouvia e sentia, também)
- a escorrer, a escorrer na noite fria,
ensanguentados e longos, os gritos da mãe!

Sidónio Muralha, Poemas,
Porto, Editorial Inova Limitada. 1971