domingo, 30 de novembro de 2008

Natal

Nasceu.
Foi numa cama de folhelho,
entre lençóis de estopa suja,
num pardieiro velho.
Trinta horas depois a mãe pegou na enxada
e foi roçar nas bordas dos caminhos
manadas de ervas
para a ovelha triste.
E a criança ficou no pardieiro
só com o fumo negro das paredes
e o crepitar do fogo,
enroscada num cesto vindimeiro,
que não havia berço
naquela casa.
E ninguém conta a história do menino
que não teve
nem magos a adorá-lo,
nem vacas a aquecê-lo,
mas que há-de ter
muitos Reis da Judeia a persegui-lo;
que não terá coroa de espinhos
mas coroa de baionetas,
postas até ao fundo
do seu corpo.
Ninguém há-de contar a história do menino.
Ninguém lhe vai chamar o Salvador do Mundo.

Álvaro Feijó, “Diário de Bordo”, in Alexandre Pinheiro Torres (prefácio, organização e notas), Novo Cancioneiro, Lisboa, Editorial Caminho, 1989