para regressar àquele lugar
junto ao pequeno rio da minha terra
serpenteando no fundo das quebradas
depois da escola
era a escola da natureza e da vida
e a vida ali transbordava
para as margens da infância
e enquanto os alfaiates se atarefavam
a costurar aquela veste absolutamente diáfana
os girinos cabeçudos dançavam sempre
numa festa que se julgava interminável
chalravam no riacho as rãs o seu hino da alegria
e as lavadeiras coaxando sobre os romances da aldeia
batiam na pedra a roupa que depois
ia a corar na orla verde do rio
era bom ver o ribeiro a correr alacremente
para os braços do futuro
ignorando que o futuro seria um amanhã
que não poderá mais cantar
hoje o ribeiro apenas se adivinha sob o alcatrão das ruas
construídas para criar mais pontes entre os homens
que por ali perpassam vertiginosamente
para um valado de rosas apodrecidas
só eu continuo a atravessá-lo
saltando de pedra em pedra
Anthero Monteiro, Sulcos da memória e do esquecimento,
Porto, Corpos Editora, 2013