sexta-feira, 7 de novembro de 2008

O meu ribeirinho


salto o valado dos anos eriçado de silvas
para regressar àquele lugar
junto ao pequeno rio da minha terra
serpenteando no fundo das quebradas

depois da escola
era a escola da natureza e da vida
e a vida ali transbordava
para as margens da infância

e enquanto os alfaiates se atarefavam
a costurar aquela veste absolutamente diáfana
os girinos cabeçudos dançavam sempre
numa festa que se julgava interminável

chalravam no riacho as rãs o seu hino da alegria
e as lavadeiras coaxando sobre os romances da aldeia
batiam na pedra a roupa que depois
ia a corar na orla verde do rio

era bom ver o ribeiro a correr alacremente
para os braços do futuro
ignorando que o futuro seria um amanhã
que não poderá mais cantar

hoje o ribeiro apenas se adivinha sob o alcatrão das ruas
construídas para criar mais pontes entre os homens
que por ali perpassam vertiginosamente
para um valado de rosas apodrecidas

só eu continuo a atravessá-lo
saltando de pedra em pedra

Anthero Monteiro, Sulcos da memória e do esquecimento,
Porto, Corpos Editora, 2013

Foto A.M.