domingo, 16 de novembro de 2008

Não

1.
Venham todos os meninos nascidos nas palhas
duma mãe camponesa de braços vergados aos molhos de espigas
e dum pai carpinteiro.
Venham todos os vultos das docas sombrias
e todas as mulheres tristes das ruelas de lâmpada vermelha.
Venham todos os moços de braços inúteis
e todas as raparigas de olhos desiludidos
e todos os velhos que não tiveram mocidade.
Venham.
Vamos gritar que não!
Dos nossos braços levantados para regiões desconhecidas,
para multidões de estrelas,
nasceram aeroplanos.
Dos nossos braços abertos para abraçar a terra,
nasceram máquinas inimagináveis.
Mas as máquinas traíram.
E os aeroplanos traíram.
E ficou só um campo cheio de corpos inúteis.
E ficou só um campo coalhado de mortos.
Venham.
Vamos dizer que não!
O sopro de amor que chicoteou as veias
estendeu-nos os braços para novas ferramentas,
para a construção imensa da Cidade Nova.
Mas o corpo ficou-nos agarrado ao abraço pegajoso da carne machucada.
E a cabeça desligou-se para sonhos impossíveis.

2.
Nos intervalos do almoço,
sentados nos andaimes cheios de manchas de cal
ou na beira do rio,
vimos erguer-se de nossas mãos calosas a realização mais lírica de todos os tempos.
Os nossos fatos estavam manchados de óleo, companheira,
e as nossas botas carregadas de barro.
Mas que interessa o óleo, companheira, e o barro,
se os teus olhos estavam imensamente rasgados para horizontes desconhecidos,
como duas estrelas projectadas da noite?
Depois veio a traição dos aeroplanos e das máquinas inimagináveis,
a traição dos corpos agarrados à carne machucada,
a traição da cabeça partindo para sonhos impossíveis.
E ficou só o óleo e o barro,
as manchas de cal e o rio abandonado...
e as nossas lágrimas impossíveis de estancar.

3.
Um velho sábio de olhos transparentes,
que nos pousava a mão no ombro com ternura,
depois de ver nos livros e nos tubos de ensaio
o destino dos homens,
queimou os livros todos e afogou-se no rio.
E nunca mais ninguém nos pousou a mão no ombro
com a ternura do sábio que se afogou no rio.

4.
Uma rapariga loira que vendia laranjas
e enchia as ruas com a sua voz túmida de sol
desapareceu.
E as ruas ficaram para sempre silenciosas.
E as ruas ficaram para sempre sem sol.

5.
Multiplicaram-se os meninos nascidos nas palhas
e os vultos sombrios das docas sombrias
e as mulheres tristes das ruelas de lâmpada vermelha
e as raparigas de olhos desiludidos
e os velhos que não tiveram mocidade.
A camponesa continua de pé no campo com as saias ao vento.
Mas já não tem os braços vergados pelas espigas
porque as searas ficaram por ceifar.
Os aeroplanos enevoam o céu.
E as máquinas inimagináveis trabalham, trabalham.
Mas ficou só um campo cheio de corpos inúteis.
Mas ficou só um campo coalhado de mortos.

Ah! Venham!
De todos os campos, de todas as cidades, de todos os portos, de todos os mares.
Venham
Vamos dizer que não!

Mário Dionísio, Poesia Incompleta,
Mem Martins, Publicações Europa-América, 1966
Pintura de Mário Dionísio, ibidem.