domingo, 16 de novembro de 2008

Rapaz do bairro da lata

Nasci no Vale Escuro
Brinquei entre latas
Pulei o alão
Andei à pedrada
Escorreguei no muro
Caí no jará
Ganhei no pião.
A jogar à bola
Perdi a sacola
Mais o que trazia
A fugir ao guarda
Que nos perseguia.
Mas que bem sabia
Faltarmos à escola!

Já rapaz crescido
Sequer fui ouvido
Só meu pai o quis:
Entrei de aprendiz
Para uma oficina
Minha melhor sina
Ofício gritado
Estalo safanão
Era um pau-mandado
Nas mãos do patrão.

Lembrança de jogos
Que tanto gostava
Deu-me pra pensar
Que jogo era aquele
Que só um jogava?
E no doutro dia
Logo que o patrão
Levantou da mão
Para a bofetada
Peguei num martelo
Entrei na jogada.

Mudei de oficina
Subi de aprendiz
Dobrei uma esquina
Minha vida fiz.
Na escola nocturna
Meti-me a estudar
Tenho namorada
Vamos namorar
Tenho amigos certos
Vamos trabalhar
Todos a lutar
Pelas coisas da vida
Que queremos viver!

Manuel da Fonseca, Obra Poética,
Lisboa, Editorial Caminho, 1998, 8.ª ed.

Foto in: http://boomer-cafe.net/version2/index.php/Modes-de-vie-des-annees-50/Des-bidonvilles-aux-portes-de-Paris.html