segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Poema do homem-rã

Sou feliz por ter nascido
no tempo dos homens-rãs
que descem ao mar perdido
na doçura das manhãs.
Mergulham, imponderáveis,
por entre as águas tranquilas,
enquanto singram, em filas,
peixinhos de cores amáveis.
Vão e vêm, serpenteiam,
em compassos de ballet.
Seus lentos gestos penteiam
madeixas que ninguém vê.

Oh que insólita beleza!
Festivo arraial submerso.
Poema em líquido verso.
Biombo de arte chinesa.
No colóquio voluptuoso
dessa alegria pagã,
babam-se os olhos de gozo
na máscara do homem-rã.

Suspensas e sonolentas,
rendas de bilros voláteis,
esboçam-se as formas contrácteis
das medusas nevoentas.
Num breve torpor elástico,
como dobras de sanefas,
estremecem as acalefas
e as alforrecas de plástico.

Com barbatanas calçadas
e pulmões a tiracolo,
roçam-se os homens no solo
sob um céu de águas paradas.
Passam por entre as lisonjas
das anémonas purpúreas,
por entre corais e esponjas,
hipocampos e holotúrias.

Sob o luminoso feixe
correm de um lado para o outro,
montam no lombo de um peixe
como no dorso de um potro.

Onde as sereias de espuma?
Tritões escorrendo babugem?
E os monstros cor de ferrugem
rolando trovões na bruma?

Eu sou o homem. O Homem.
Desço ao mar e subo ao céu.
Não há temores que me domem.
É tudo meu, tudo meu.

António Gedeão, Poesias Completas - 1956-1967,
Lisboa, Portugália Editora, 1975, 5.ª ed.