domingo, 2 de novembro de 2008
O menino desenha
O menino desenha
O pólen do seu lápis cai nas folhas maltratadas;
No papel, a mãezinha é apenas uma bolha.
O menino risca e pede a Deus que o seu pai venha
Ver estas coisas desenhadas.
A irmãzinha mais moça quer o lápis e olha,
Uma lágrima em bico o seu olhar envidraça;
A chuva do menino são uns pontos tão depressa
Que o lápis se estilhaça.
O menino faz o galo, a torre, a casa e o judeu,
Que mostra aos outros meninos:
Mas a casa é que tem as pernas e o galo é que abre janelas,
A torre é que usa as barbas e o judeu tem os sinos
Por não ter nada de seu.
Oh meu rico menino, que fazes as coisas belas!
A irmã mais velha do menino há-de
Ser a mãe dos sobrinhos que desenharão também
O tio com uma bolha, como ele vê em bolha a sua mãe.
"Tem óculos, não está quieta e é muito boa";
O menino garatuja,
E vê-se a luz e os vidros, e até se vê a bondade
Que veio à sua mão suja
Do lado em que estava a pessoa.
O irmãozito do menino
Também está metido, e bem, neste quadrado:
É aquela figura de que o avô disse: -"É um pepino!",
Sem se lembrar que o artista podia ficar magoado.
Ah, meu menino, minha estrela a arder de dia,
Não deixes que te mexam no traço virginal que aprendeste
Quando eras o fio de sol na escuridão que enchia
A tua mãe - bolhinha, enquanto te não desprendeste.
Vitorino Nemésio, Antologia Poética,
Lisboa, Círculo de Leitores, 1988
Foto A.M.